A entropia venceu

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Quando somos crianças, o pouco tempo de vivência que temos faz com que certas coisas pareçam eternas. No meu caso, eram os churrascos de domingo na laje dos meus pais. Eles, meus tios, avós e amigos da família se reuniam aos domingos, queimavam algumas carnes e passavam a tarde juntos. Foi nesses churrascos que aprendi meus primeiros palavrões e andei pela primeira vez de bicicleta sem rodinhas. 

Até que, por alguma razão banal, esses eventos acabaram. Talvez a carne tenha ficado cara naqueles tempos caóticos de inflação galopante dos anos 90, ou ocorreu um desentendimento na família. Quem sabe as pessoas apenas ficaram enjoadas mesmo. Mas aquilo realmente mexeu comigo por algum tempo. Parecia que alguma instituição sagrada dos domingos tinha se perdido. 

Eu era bem pequeno e foi a primeira vez que eu vi um costume morrer. Com o passar dos anos, essa morte de grupos e eventos sempre me intrigou. Na adolescência, formei um trio de amigos que julguei ser para sempre. Por razões diversas, fomos para escolas diferentes e, mesmo assim, mantivemos contato um com o outro por anos a fio. Não tinha rede social ou Whatsapp, era telefone, idas ao shopping e visitas nas casas uns dos outros. Até que os encontros foram ficando mais esparsos e as ligações mais distantes umas das outras. Sem qualquer formalidade ou briga, esse trio despareceu e nunca mais nos encontramos. 

Essa história se repetiu inúmeras vezes. Grupos de amigos que minguam, bares populares que parecem perder o brilho, centros comerciais que definham. Essas pequenas mortes passaram a me fascinar um pouco mais quando, estudando a teoria dos sistemas, descobri o conceito de entropia. Não cabe aqui entrar no detalhe – para isso, o Google está aí a seu dispor. Mas vou resumir com uma definição muito usada para a entropia: é uma “medida de desordem no universo”. É a constante que sempre caminha na direção da morte de todas as coisas.

Isso pode ser aplicado a quase tudo. Desde conceitos mais físicos, como a morte de estrelas e galáxias, até aspectos mais abstratos ao nosso redor, como amizades e bons hábitos. Eu sei que eu não posso evitar a morte entrópica do universo. Mas, no dia a dia, aprendi que podemos combater a entropia daquilo que nos cerca. 

Se não cuidamos de um relacionamento amoroso, ele tende a se enfraquecer e dissolver. Se não formos disciplinados e organizados no trabalho, a eficiência tende a cair. Se você deixa de levar o seu cachorro na rua com certa frequência, eventualmente você irá levá-lo cada vez menos. O nome dessa força oposta, na teoria de sistemas, seria entropia negativa. Ou sintropia. O nome em si não importa, mas sim o hábito que todos devemos ter: trabalhar para que as coisas que você ama ou valoriza mantenham-se vivas e estáveis. 

Todos nós sabemos exatamente o que precisamos fazer para combater a morte das coisas ao nosso redor. Nós não o fazemos por preguiça, ou porque sempre achamos que “ainda dá tempo”. É marcar de ver nossos amigos com mais frequência, não deixar de fazer exercícios físicos um determinado número de vezes por semana, melhorar nossa alimentação, telefonar para aquele parente do qual sentimos saudade. E ainda tem algo que nos passa despercebido: a importância de deixar clara a sua intenção de resgatar um relacionamento. Demorar sete parágrafos para chegar ao tema do texto realmente mostra uma certa falta de poder de síntese, eu admito. 

Quando levamos a entropia ao microcosmo dos relacionamentos interpessoais, muita coisa pode ser desperdiçada porque algum lado da conversa não soube interpretar os sinais. Você está ali achando que está deixando bem claro para o outro que quer se aproximar, mas muitas vezes o outro nem percebe. As pessoas, em geral, são ruins em interpretação mesmo. Fale. Deixe claro. 

“Olha, eu quero resgatar a nossa amizade”. “Queria reconstruir o nosso relacionamento”. “Gostaria de me reaproximar de você”. “Quero ser seu amigo”. Por algum orgulho bobo, a gente evita essas frases. É uma crítica que eu faço a mim mesmo, eu também tenho dificuldade em deixar isso claro. Infelizmente, eu paguei caro por isso. 

Há menos de uma semana, eu perdi a amizade mais antiga que eu tinha – e que é a razão pela qual eu decidi voltar a escrever. Sabe aquela pessoa que viu você criança, passou ao seu lado os dramas da adolescência, conheceu todas as suas paixões, tinha seus mesmos hobbies e sabia quase tudo de você? O tipo de pessoa que você sente à vontade para chamar para os programas mais idiotas do mundo, como ir ao banco ou ao mercado? Era esse o tipo de amizade que a gente tinha. 

Mas nós nos desentendemos. Foi uma briga grave, em que eu fiquei extremamente dividido entre a fidelidade a uma amizade e a fidelidade aos meus valores. Naquele momento, depois de muita conversa e tentativas de ajudar, eu escolhi os meus valores e preferi me afastar. Não era para ser um adeus, e sim um até breve. Nas conversas que tivemos após essa briga, sempre achei que tivesse sido claro: a gente precisava deixar que as feridas da nossa amizade cicatrizassem. Era necessário deixar a poeira baixar. O famoso “dar tempo ao tempo”. 

Mas, me repetindo, eu apenas achei que tivesse sido claro. Quando esse amigo optou por não seguir nesse mundo, seus escritos de despedida falavam muito de mim com uma interpretação completamente diferente. Falava que eu tinha decidido abandoná-lo para sempre, que eu jamais queria vê-lo novamente. 

Eu tinha planos para a nossa amizade, para uma retomada. Só que preferi não compartilhar com ele. Pensava em convidá-lo para corridas ou caminhadas matinais que pudessem ajudá-lo a combater a depressão. Em tentar incentivá-lo a abraçar hobbies e um estilo de vida mais saudável. O “ainda dá tempo” que faz a gente deixar a entropia dos relacionamentos ao nosso redor avançar me enganou. Não deu tempo. A entropia venceu. 

Como qualquer amigo próximo de alguém que decide tirar a própria vida, entrei no famoso ciclo de culpa. Eu já tenho decorado todos os argumentos racionais a respeito do assunto. Eu sei que não foi uma escolha minha, que fizemos o que estava ao nosso alcance, que não somos profissionais de saúde treinados para situações como essa e que navegar no mar dos “e se naquele dia eu agisse diferente” é um caminho sem volta para a loucura. E, mesmo munido de todos esses argumentos, a dor e a culpa ainda estão lá.

Eu vejo o hábito de escrever como terapêutico, por isso quis deixar por aqui a lição que aprendi (eu acho) disso tudo: nos relacionamentos interpessoais, não basta combater a desordem. Precisamos deixar nossas intenções cristalinas. Hoje, cada vez mais eu vejo um certo desprezo pela transparência. Parece que há um charme em não deixar nossos pensamentos às claras, de tentar “dizer mais” com pequenos gestos e torcer para que o outro pegue a mensagem. Na maioria das vezes, a sutileza não é suficiente para vencer a entropia.

Ps.: de coração, obrigado a todos que participaram das últimas homenagens a ele.  

Ps².: a arte que ilustra é uma cena da Cinelândia destruída produzida para a capa da segunda edição do meu livro, feita pelo próprio Pedro. 

Escritor, jornalista e carioca. Autor do livro Rio 2054. Gosta de escrever sobre literatura, games, política e o cotidiano do Rio.

2 comentários:

  1. Um texto reflexivo e necessário para os residentes do século XXI!

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  2. Quando a cabeça não está boa , envolvemos os que mais amamos nós mais absurdos dramas...
    Que legal ver vc voltando a escrever , vc que me incentivou muito a lançar um livro recentemente...
    Vá em frente. Tenho certeza que será um sucesso.

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