A dolorosa morte de um jornal: o fim do Jornal do Brasil e do Jornal dos Sports




A notícia de que mais um jornal fechou as portas ou vai demitir um sem-fim de gente – o famoso passaralho – já não chega a ser novidade. Entre o pessoal que escolheu como ofício a vida de plantões e pescoções, é raro encontrar quem nunca tenha sido alvejado por um ou ao menos visto um colega ir embora dessa forma. Acabou se tornando tão trivial que a gente acha que já se acostumou a andar na corda bamba, sempre pronto para se esquivar da próxima saraivada de demissões.

Eu tive a infelicidade de acompanhar de perto o fim de dois dos jornais mais cariocas que existiram e que, cada um ao seu modo, entraram para a história do jornalismo nacional: o Jornal do Brasil e o Jornal dos Sports. Faz um tempo que eu queria colocar essa angústia no papel, mas segurei o sentimento por alguns anos, especialmente em respeito a alguns colegas.

Acho que o que mais me chocou na morte dos dois jornais é a relação que nós, jornalistas, temos com o nosso trabalho. Sem desmerecer as outras profissões, e há muitas tão ou mais relevantes quanto a nossa, mas a relação entre o repórter e o seu jornal é diferente de tudo. Não é só um escritório de onde você entre e sai, cumprindo as suas obrigações e levando o seu ganha-pão para casa. É diferente.

Aquela página com o seu nome estampado na assinatura é sua e de mais ninguém. Mesmo que signifique trabalhar ainda mais sem nem o editor pedir, você quer que aquela reportagem saia perfeita. Você quer que todos os jornalistas fiquem com uma ponta de inveja da sua história. Você quer que aquele político que você denunciou te xingue no gabinete dele quando abrir o jornal. Quer que metade da torcida do Flamengo fique boquiaberta com o furo de uma contratação que só você sabe.
A redação do JB Online, já depois do fim do jornal impresso

E, a partir do momento em que o jornalista coloca tanto de si na página de um jornal, ele passa a se sentir parte dele. São horas de apuração, assessores que pedem a sua cabeça e uma batalha interminável contra o deadline. A redação deixa de ser seu local de trabalho, seu ganha-pão. Ela passa a ser quase uma extensão do seu corpo.

Até o dia em que o castelo de cartas desmorona e o sopro do passaralho leva tudo embora. Eu ainda lembro do clima no Jornal do Brasil dias antes do anúncio do fim da versão impressa do jornal. Boatos corriam pela empresa, mas os veteranos tratavam de derrubá-los rapidamente. “Tô aqui há 10 anos, garoto. Sempre falam que o jornal vai virar online, mas isso nunca acontece”.

Ainda lembro do susto escancarado no rosto desses mesmos veteranos quando, sem dar qualquer explicação aos funcionários, o Jornal do Brasil publicou um anúncio de página inteira anunciando o fim do impresso. Metade da redação se apinhou em torno do diagramador que recebeu o tal anúncio e nenhum de nós sabia exatamente onde aquilo ia parar. Alguns choraram. Muitos desceram para fumar. Outros correram para o computador e começaram a mexer os pauzinhos em busca do próximo emprego, cientes da derrocada iminente. Como versões brasileiras de Santiago Nasar, de Gabriel Garcia Marquéz, acompanhávamos em choque o desfecho da crônica de uma morte anunciada.

Nos dias seguintes, vivíamos em um mundo de boatos misturados com demonstrações de amor e ódio ao jornal. Quando o seu jornal acaba, é pior do que perder um emprego. É como o fim de um romance conturbado: você não sabe se xinga e adora o velho amante pelo avesso, se abraça os bons momentos ou tenta um retorno desesperado. De uma maneira ou de outra, uma parte de você fica para trás. Em todas as redações, só se falava da morte do Jotabê.

Cor de rosa

Esquecido, o Jornal dos Sports teve um enterro mais discreto – e nem por isso menos sofrido. Comprado por um empresário que prometia reerguer o velho cor de rosa, a nova aventura durou menos de um ano. Foi um banho de água fria em um jornal que era dominado por estagiários. Ao lado de figuras míticas do jornalismo esportivo, como José Antônio Gerheim, Newton Zarani e Jair Motta, trabalhávamos movidos à empolgação. Para a grande maioria, aquele era o primeiro estágio e a primeira oportunidade de estampar o nome em um jornal impresso. Ninguém se importava em ficar depois da hora, a maioria fazia até questão.

Um dia normal na redação do Jornal dos Sports, em 2007 (ou 08)
Em toda a minha carreira, acho que nunca vi um time tão entrosado e fechado. Quando você passa dias inteiros trabalhando loucamente um ao lado do outro e aprendendo jornalismo na base da porrada. Enfrentamos (e furamos) concorrentes muito mais experientes e fechamos uma edição do jornal em meio a um assalto à redação com direito a tiroteio (graças ao lendário editor-chefe Flávio Almeida), mas não aos patrões. Despedaçado aos poucos, o JS recusou-se tanto a morrer que não teve um enterro digno. E parte de todos nós se foi com ele. Do cor de rosa, ficam as boas memórias, a experiência, o acróstico escondido em uma matéria que escrevi para a minha futura esposa, os chopps e os campeonatos de Pro Evolution Soccer.

Como já dizia Nelson Rodrigues, que também foi jornalista do próprio Jornal dos Sports, “amar é ser fiel a quem nos trai”. E nós, jornalistas, fazemos exatamente isso. Enquanto os patrões fecham as portas com o dinheiro nos bolsos, deixamos um pouco de nós para sempre nas páginas que assinamos. Hoje, os barões da mídia explodem em lucros maiores ano a ano enquanto os salários murcham e as demissões em massa se proliferam.

E, ainda assim, a gente briga para ter a melhor matéria, o furo do dia, o chopp com os coleguinhas no fim do pescoção. Tanto no fim do Jornal do Brasil quanto do Jornal dos Sports, eu também vi muita coisa bonita. Vi chefe jornalista impedindo repórter com filho recém-nascido de ser demitido. Vi gente ser demitida com lágrimas nos olhos não porque ia ficar sem emprego, mas porque o jornal ia acabar.

Nós somos uma raça muito estranha.

E é muito foda ser jornalista.

Ps.: por alguma coincidência brutal, busquei no Google por imagens do Jornal do Brasil e o segundo resultado é a capa do meu primeiro dia no jotinha. A matéria sobre os moradores da Tijuca e da Usina felizes com a UPP (Enfim, o direito à janela) é minha

Ps².: esse post foi escrito em 2015, mas ficou guardado no rascunho desde então

Escritor, jornalista e carioca. Autor do livro Rio 2054. Gosta de escrever sobre literatura, games, política e o cotidiano do Rio.

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