Uma pergunta aos escritores: você é cúmplice do preconceito?
Já há algum tempo, participo de grupos de discussões literárias
com outros escritores. Curiosamente, na mesma semana, esbarrei em uma discussão
idêntica em dois grupos diferentes: em um grupo brasileiro e em um
internacional (esse último composto majoritariamente por norte-americanos): a
inclusão de mulheres e diferentes etnias em obras literárias.
Até aí tudo bem, esse tipo de discussão surge de tempos em
tempos. O que me assustou foi o posicionamento diametralmente oposto. No brasileiro,
a grande maioria dos autores dizia que era uma afronta à liberdade pensar que o
autor deveria ter alguma responsabilidade. Cheguei a ler que esse pensamento de
inclusão nos livros era fruto do “mal que o PT trazia ao país”. No americano,
tivemos uma longa e extremamente saudável discussão sobre a responsabilidade de
um escritor sobre a sua obra, a importância dos papéis de gênero e os
estereótipos de raça.
E é aí que eu lanço a pergunta: até onde vai a
responsabilidade de um autor com o mundo que ele cria?
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Por mais incrível que pareça, fãs de Jogos Vorazes nos Estados Unidos reclamaram de Rue ser... negra. É sério. |
Nós vivemos em um mundo extremamente machista, racista e
homofóbico. Diariamente, mulheres são assediadas ou atacadas por ex-parceiros
que as veem como propriedade, negros são julgados pela quantidade de melaninana pele e homossexuais precisam dar satisfações ao resto da sociedade. Se participar de qualquer um
desses três grupos e ainda por cima morar em uma favela ou área carente, a
coisa piora. Lá, as leis não se aplicam. O que vale lá é a bala e o julgamento de um policial militar despreparado (aliás, o vídeo dessa reportagem do G1 é chocante).
Em suma: nosso mundo não é nada bonito.
Já li um livro em que, entre vários personagens do sexo
masculino, haviam apenas duas personagens femininas: uma era uma prostituta que
passava a maior parte da história seminua e a outra era fútil e desequilibrada.
Já li histórias em que o único personagem negro era o traficante, o ladrão, o
assassino. Ou a empregada doméstica. E por aí vai.
Sempre que vejo esses autores sendo questionados por abusar
de estereótipos batidos ou reproduzir preconceitos em páginas de livro, escuto
respostas semelhantes: “sou livre para criar a história que eu quiser e ninguém
tem o direito de julgá-la”. “Eu estou apenas reproduzindo o que acontece de
verdade. Afinal, você acha que há mais garotos de programa do que garotas de
programa? E quase todo traficante é negro, né?”.
Para eles, só posso responder o seguinte: parabéns por
ajudar a perpetuar o preconceito e a ignorância.
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Propaganda de supremacia branca nos EUA, o filme Birth of a Nation é desprezível |
As histórias – sejam em livros, filmes, HQs ou games – são
poderosíssimas. Desde que o mundo é mundo, elas são utilizadas como ferramentas
de fortalecer o preconceito e a exclusão. Na Alemanha nazista, livros infantis
retratavam o “judeu malvado” que roubava e atormentava crianças. Nos Sul dos Estados
Unidos, a propaganda anti-abolicionista abusava de livros, e no século XX até
de um filme, no qual os negros são retratados como criaturas preguiçosas,
fadadas à criminalidade e ao fracasso.
Aliadas a um ambiente hostil, essas histórias levam ao campo
da ficção o preconceito que se desenrola no dia-a-dia, mas não para enfrentá-lo.
E sim para apoiá-lo.
Representatividade e
variedade
E isso não quer dizer que o escritor deve ser um guerreiro
social disposto a desafiar o sistema o tempo inteiro. Quando você faz uma obra
voltada ao entretenimento, muitas vezes tudo o que você quer fazer é...
entreter. Porém, diante do poder da ficção, acho que todos nós devemos sempre
refletir se estamos ou não sendo cúmplices do preconceito.
E não estamos falando apenas em ideais, estamos falando de
qualidade. Em uma obra, a variedade do elenco de personagens – sobretudo se for
um livro com múltiplos narradores – é um grande diferencial. Quanto mais
variado, mais pontos de vista diferentes. Quanto mais pontos de vista
diferentes, mais profundidade.
Também é uma questão de identidade. Vivemos em um país com
uma grande diversidade étnica e a maior parte do público literário é composto
por mulheres. E, entre os vários nacionais que li, o único que tem uma
protagonista negra forte é Rani e o Sino da Divisão, do excelente Jim Anotsu.
Não estou dizendo que os leitores só se identifiquem com personagens do mesmo
sexo ou etnia que eles (aliás, me identifiquei bastante com a Rani por conta do
estilo straight edge J
), mas é um incentivo a mais para se aproximar do personagem.
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Você sabia que, em 2013, a Globo lançou uma novela com 44 personagens e... nenhum era negro |
Toda vez que leio um livro que fala dos dilemas de jovens de
periferia ou favelas, tanto brasileiros quanto estrangeiros, me identifico na
hora. Assim como os personagens que gostam de rock. Ou os jornalistas. Eu sinto
que eles têm uma ligação comigo. E todos nós sempre buscamos uma ligação com os personagens, mesmo quando os conflitos que eles encaram são bem distantes da nossa realidade (que aula de humildade do Maurício de Souza nessa história).
Aliás, usar o próprio preconceito é uma maneira de expô-lo. As
Crônicas de Gelo e Fogo são um grande exemplo disso. O mundo de Westeros é
cheio de preconceito, misoginia, estupros e massacres. Mas Martin trabalha esse
preconceito com maestria ao adotar personagens o enfrentam, como Daenerys,
Brienne e Tyrion.
Todos somos livres para escrever as histórias que queremos
nos mundos que queremos. Nem devemos criminalizar ou banir autores que escreveram obras carregadas de preconceito por conta de peculiaridades de suas épocas. No entanto, vale a pena se perguntar: por que será que
todos os meus protagonistas são homens brancos? As mulheres do meu livro são
mais do que objetos de decoração?
E, por fim: eu estou desafiando o mundo de preconceitos em
que vivemos? Ou sou um mero cúmplice?
Ps.: nos grupos brasileiros, essa discussão toda começou por
conta desse excelente post, do Momentum Saga. Se você gosta de literatura e
ficção científica, vale muito a pena conferir os posts da Sybylla.
Ps².: recomendo demais Rani e o Sino da Divisão. É um livro infanto-juvenil feito para todas as idades e com uma escrita sensacional. Espero que o Jim transforme o mundo xamânico em uma saga.
O pior é que eu sempre espero que as pessoas reflitam com os posts, que tentem olhar para o outro. Pego alguns escritos meus de anos atrás e olho que eu coloquei os personagens quase todos eles brancos e hoje me pergunto o quanto eu consegui desconstruir para poder enxergar a diversidade humana.
ResponderExcluirInfelizmente, sabemos bem que nem todo escritor é assim. Aliás, tem muito escritor que, ainda hoje, sofre com a Doença do Rei na Barriga, estágio IV, onde ele se acha o dono da literatura e que ninguém deve questioná-lo. A literatura é uma ferramenta poderosa e o escritor tem sim que enxergar a responsabilidade que ele tem. É muito cômodo começar a escrever sobre ele mesmo, difícil é sair da zona do conforto pra abraçar o novo. Vemos a chiadeira que é cada vez que pedimos isso.
Muitas vezes, a primeira coisa que esses caras fazem é "mas eu não sou racista/machista/homofóbico" quando a única coisa que a gente pede é reflexão. Mas se a carapuça serve, né??
Ótimo texto, Jorge e obrigada!
Eu ia comentar, mas meus textos ficam maiores de madrugada e meu blog ainda estava sem nada... fiz um post-resposta. Ficaria feliz se você lesse (e se aprovasse a citação ilícita ali no meio).
ResponderExcluirhttp://psychowritter.blogspot.com.br/2015/03/por-que-representatividade-e-importante.html
Não é porque uma obra é de entretenimento que ela está livre para ser leviana, para carregar preconceitos. Toda expressão de arte é política, mesmo que o autor não tenha consciência disso. Então, é muito melhor quando o autor cria sua obra sabendo do impacto, das consequências, que ela terá em seus leitores, no caso da literatura. Claro que um autor cheio de preconceitos pode atingir milhões defendo uma visão de mundo que incita o ódio. Mas também há a possibilidade do contrário. Seja escrevendo sobre super-heróis ou um drama familiar, cada personagem e cada rumo da trama carrega vários significados, explícitos e implícitos. Qualquer um que crie arte e queira se comunicar com as pessoas deveria ter em mente que pode lutar contras os preconceitos por meio de sua obra, não de maneira panfletária e chata. Cada autor está livre para escrever o que quiser, mas sua obra não pode servir de veículo para perpetuar preconceitos e visões estreitas do mundo. Ser inclusivo é uma maneira de mostrar qual é sua real capacidade como escritor, até onde pode ir sua imaginação, seu entendimento sobre as pessoas, sobre a vida.
ResponderExcluirNão é porque uma obra é de entretenimento que ela está livre para ser leviana, para carregar preconceitos. Toda expressão de arte é política, mesmo que o autor não tenha consciência disso. Então, é muito melhor quando o autor cria sua obra sabendo do impacto, das consequências, que ela terá em seus leitores, no caso da literatura. Claro que um autor cheio de preconceitos pode atingir milhões defendo uma visão de mundo que incita o ódio. Mas também há a possibilidade do contrário. Seja escrevendo sobre super-heróis ou um drama familiar, cada personagem e cada rumo da trama carrega vários significados, explícitos e implícitos. Qualquer um que crie arte e queira se comunicar com as pessoas deveria ter em mente que pode lutar contras os preconceitos por meio de sua obra, não de maneira panfletária e chata. Cada autor está livre para escrever o que quiser, mas sua obra não pode servir de veículo para perpetuar preconceitos e visões estreitas do mundo. Ser inclusivo é uma maneira de mostrar qual é sua real capacidade como escritor, até onde pode ir sua imaginação, seu entendimento sobre as pessoas, sobre a vida.
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